Nepal em chamas: Gen Z derruba premiê, líderes são atacados e casa de ex-chefe de governo pega fogo

Nepal em chamas: Gen Z derruba premiê, líderes são atacados e casa de ex-chefe de governo pega fogo

Uma faísca digital virou incêndio político. Depois de dias de manifestações lideradas pela Gen Z contra a censura nas redes e a corrupção, o país assistiu ao que autoridades já chamam de a pior onda de violência em anos: KP Sharma Oli renunciou ao cargo de primeiro-ministro, prédios públicos foram atacados, e líderes veteranos foram caçados nas ruas de Katmandu. No episódio mais trágico, a casa do ex-premiê Jhalanath Khanal, no bairro de Dallu, foi incendiada por uma multidão. Há relatos conflitantes sobre o que aconteceu com sua esposa, Rajyalaxmi Chitrakar: parte da imprensa local diz que ela morreu por queimaduras; outra parte afirma que ela foi socorrida com ferimentos graves e levada ao Hospital de Queimados de Kirtipur.

Os números mostram a gravidade do colapso: 22 mortos até agora, mais de 300 feridos em confrontos, disparos de arma de fogo e pisoteamentos. Vídeos que circulam desde segunda-feira exibem cenas de espancamentos, janelas estilhaçadas e salas em chamas no complexo do Parlamento, em Singha Durbar. Jovens dançam em meio às labaredas e gritam palavras de ordem. Uma estudante de 20 anos, Mira Thapa, resumiu o clima de ruptura ao erguer a bandeira nacional: “Este prédio nunca trabalhou por nós. Queimá-lo é começar algo novo”.

O que desencadeou a crise

O estopim foi a proibição de redes sociais, adotada pelo governo como resposta a críticas online e à circulação de conteúdos considerados difamatórios. A medida atingiu em cheio a geração que nasceu após a guerra civil e cresceu conectada. A partir de 8 de setembro, o grupo Hami Nepal organizou atos pacíficos em Maitighar Mandala e nos arredores do Parlamento. A repressão elevou o tom. Quando a polícia abriu fogo contra a multidão, o protesto virou confronto – e a morte de 19 pessoas em um único dia empurrou o país para um ponto sem volta.

O pano de fundo vai além da internet. Jovens reclamam de promessas que nunca saíram do papel: empregos formais escassos, migração forçada para trabalhos de baixa remuneração no exterior, carreiras travadas pelo apadrinhamento político. A isso se somam denúncias de corrupção, decisões tomadas a portas fechadas e um sistema partidário que, para muitos, parece preso ao passado. A Gen Z nepalesa sente que não tem voz – e que seus votos pouco mudaram a vida real.

A crise também expôs a fragilidade da política local. Nomes como KP Sharma Oli (Partido Comunista do Nepal–UML), Sher Bahadur Deuba (Congresso Nepalês), Pushpa Kamal Dahal, o Prachanda (Centro Maoísta), Madhav Kumar Nepal e Jhalanath Khanal já chefiaram governos em ciclos de alianças instáveis desde a Constituição de 2015. Entre troca de cadeiras e coalizões improvisadas, a sensação de paralisia cresceu. Com o bloqueio das redes, veio o estalo para a ruptura.

Como a violência se espalhou

Na terça-feira à tarde, manifestantes entraram no complexo de Singha Durbar, quebraram vidraças e atearam fogo a diferentes salas. O prédio virou símbolo do que os jovens chamam de política distante. Paralelamente, a residência de Khanal foi atacada e incendiada. É nessa cena caótica que surge o caso de Rajyalaxmi Chitrakar. As informações seguem desencontradas: alguns veículos noticiaram a morte por queimaduras; outros dizem que ela foi atendida em Kirtipur e se recupera. Até o momento, não há uma nota oficial final sobre seu estado, o que pede cautela ao consumir mensagens e boatos que se espalham pelo WhatsApp e por aplicativos de mensageria.

As agressões não pararam ali. O ex-primeiro-ministro Sher Bahadur Deuba, que comandou o governo em cinco ocasiões, e sua esposa, Arzu Rana Deuba – atual ministra das Relações Exteriores – foram cercados e espancados. As imagens mostram ambos ensanguentados antes de serem retirados às pressas por seguranças. A própria Arzu relatou a auxiliares que ouviu dos agressores: “Vocês roubaram nosso futuro”.

O ministro das Finanças, Bishnu Prasad Paudel, 65, sofreu uma das investidas mais brutais. Ele foi perseguido pelas ruas, chutado e espancado. Em seguida, a multidão o despiu, assim como o deputado Eknath Dhakal, e os exibiu como troféus de uma revolta que decidiu impor humilhação pública a autoridades. Esses atos colocam a crise além da disputa política e escancaram um colapso de normas básicas de convivência.

Os alvos incluíram casas de pelo menos cinco ex-primeiros-ministros. Segundo relatos locais, as residências de KP Sharma Oli, Prachanda, Deuba, Madhav Nepal e Khanal foram atingidas por incêndios ou depredação. Também houve ataque à prisão central de Nakkhu, que pegou fogo e registrou fuga de detentos, incluindo o líder do Rastriya Swatantra Party (RSP), Rabi Lamichhane. Quando uma cadeia arde e presos escapam em meio ao tumulto, o recado é claro: o Estado perdeu momentaneamente o controle.

  • Singha Durbar (complexo do Parlamento): vidraças quebradas e salas incendiadas.
  • Residência de Jhalanath Khanal: fogo e vítimas; caso de Rajyalaxmi Chitrakar segue em apuração.
  • Casas de ex-premiês Oli, Prachanda, Deuba e Madhav Nepal: depredação e incêndios.
  • Nakkhu Central Jail: incêndio e fuga de Rabi Lamichhane.

Com a escalada, o Exército assumiu a segurança a partir das 22h de terça-feira, anunciou que evitaria envolvimento político direto e fez um apelo público por calma. Na prática, os militares passaram a coordenar a ordem pública, enquanto a polícia, desgastada e sobrecarregada, tenta reorganizar linhas de proteção. A movimentação marca um momento delicado para a jovem democracia do país, que ainda lida com as cicatrizes da guerra civil e da transição da monarquia ao regime republicano.

A renúncia de Oli, pressionado pela perda de apoio e pela implosão da segurança, abre um vácuo. Há conversas de bastidores sobre um governo interino, com a tarefa de restabelecer a ordem, rever o bloqueio das redes e preparar uma saída política que envolva eleições ou um pacto mínimo entre as principais forças. Líderes comunitários e religiosos também entraram em campo, alertando para o risco de mais linchamentos, saques e acertos de contas pessoais disfarçados de revolta cívica.

Do outro lado da fronteira, a Índia colocou suas forças em alerta máximo nos postos de entrada com o Nepal. O primeiro-ministro Narendra Modi reuniu o Comitê de Segurança do Gabinete para avaliar impactos imediatos: pressão migratória, interrupção do comércio, rotas de contrabando e riscos de incidentes em áreas sensíveis do Himalaia. Nova Délhi monitora qualquer movimento do Exército nepalês que possa sinalizar uma intervenção política, algo que mudaria as peças do tabuleiro regional.

O epicentro da revolta segue nas ruas de Katmandu, mas o humor popular já se espalha por cidades médias, onde jovens replicam os atos com bandeiras e cartazes pedindo “trabalho, voz e respeito”. Bloqueios e barricadas sobem e descem conforme chegam notícias de novas prisões ou feridos. Em hospitais, médicos relatam sobrecarga no atendimento a queimaduras, traumas e intoxicações por fumaça. O hospital de Kirtipur, referência em queimados, opera no limite – e há relatos de falta de insumos em algumas unidades menores.

Nas redes de mensagens, a disputa narrativa é frenética. Com plataformas restringidas ou intermitentes desde o bloqueio, os grupos de conversa viraram arenas para organizar atos, pedir doações de sangue e também para espalhar versões não confirmadas. Autoridades tentam responder com comunicados esparsos, mas a lentidão em esclarecer casos sensíveis, como o de Rajyalaxmi Chitrakar, deixa espaço para suspeitas. O resultado é um ciclo de indignação, rumor e mais gente na rua.

Para os jovens, o recado é direto: sem transparência e sem reforma real, não há confiança. Eles olham para a sucessão de governos desde 2015 e enxergam acordos entre caciques, disputas internas e poucas entregas. A proibição das redes virou símbolo dessa distância. Em vez de apaziguar, a censura reforçou a percepção de que o topo do poder tem medo da crítica pública – e, ao estourar a bolha digital, empurrou a frustração para a rua, onde a polícia respondeu com força letal.

Há também um fio econômico que costura a revolta. Famílias dependem de remessas de parentes que trabalham no Golfo ou na Malásia, enquanto carreiras locais se estagnam. Jovens qualificados dizem que não conseguem oportunidades que correspondam à formação. E quem fica sente que o sistema favorece quem tem padrinho. Sem uma agenda clara de empregos e de combate à corrupção, promessas de unidade nacional soam como slogans vazios.

O que vem agora depende de três fatores: a capacidade do Exército de conter a violência sem ampliar o trauma; a habilidade dos partidos de costurar uma saída com credibilidade; e a resposta concreta às pautas da Gen Z, que não são apenas “mais internet”, mas um lugar na mesa onde se decide orçamento, prioridades e futuro. As próximas 48 horas serão cruciais para entender se o país entra em um ciclo de retaliações ou se abre uma janela para mudanças.

No curto prazo, o foco está em confirmar a lista de mortos, estabilizar os hospitais e garantir que residências de autoridades, prédios públicos e áreas de votação fiquem protegidos. Observadores pedem uma investigação independente sobre os disparos de segunda-feira, quando a polícia matou 19 pessoas, e sobre os casos de violência contra líderes políticos. A pressão internacional pode vir em seguida, com pedidos de respeito a direitos humanos e de suspensão do bloqueio digital, sob pena de sanções e isolamento.

Em Katmandu, é impossível prever quando a poeira vai baixar. O país já viu protestos derrubarem governos antes, mas a energia desta geração muda o cálculo. Eles organizam vaquinhas, escalam a comunicação olho no olho quando a internet cai e não obedecem às velhas hierarquias. Para os caciques, não basta prometer reformas; será preciso abrir espaço real, entregar políticas públicas e admitir erros. Ou a chama que começou na tela vai continuar queimando no mundo físico.

14 Comments

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    Alberto Lira

    setembro 14, 2025 AT 07:01
    Cara, isso é o que acontece quando você bloqueia o queixo da galera em vez de ouvir o que ela tá dizendo. A internet não é o problema, é o espelho.
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    Rian Reis

    setembro 16, 2025 AT 06:42
    Essa geração tá cansada de promessa vazia... Eles não querem só internet, querem um futuro. 💔🔥
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    Gabriela Keller

    setembro 17, 2025 AT 09:13
    Quando o sistema vira um jogo de xadrez entre velhos que nem sabem mais jogar, a juventude pega o tabuleiro e joga no lixo. É lógico, triste e inevitável.
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    André Dagostin

    setembro 17, 2025 AT 09:29
    No Brasil também temos isso. Jovens sem emprego, sem futuro, e o governo só pensa em controlar. Não é só Nepal. É o mundo.
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    Diego cabral

    setembro 17, 2025 AT 21:11
    Ah, então agora quem tem 20 anos é terrorista? Que lindo, o sistema sempre vê a crítica como inimigo. 😏
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    Bruna Castanheira

    setembro 18, 2025 AT 05:50
    A dinâmica de poder aqui é uma manifestação clara de falência epistêmica do aparato estatal. A censura digital, enquanto mecanismo de controle hegemônico, desencadeou uma reação performativa de resistência coletiva que transcende a lógica liberal-democrática tradicional. A violência não é caos - é sintoma.
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    Maria Antonieta

    setembro 19, 2025 AT 07:01
    O bloqueio das redes sociais foi uma decisão tecnicamente inadequada, considerando a estrutura de comunicação horizontal da Gen Z. A infraestrutura informacional não é um recurso acessório - é o tecido social contemporâneo. A resposta foi previsível e, infelizmente, não surpreende.
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    Marcus Vinícius Fernandes

    setembro 20, 2025 AT 00:02
    Isso é o resultado da decadência moral. Os jovens de hoje não têm respeito por nada. Eles queimam o que construíram os que vieram antes. Isso não é revolução, é barbárie. E o mundo ocidental apoia isso? É vergonhoso.
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    Marcio Rocha Rocha

    setembro 20, 2025 AT 20:00
    Se vocês acham que isso é só Nepal, tá errado. Aqui no Brasil, os mesmos caras que gritam por democracia são os mesmos que querem censurar quem pensa diferente. É tudo a mesma máquina. Eles não querem mudança. Querem controle. E agora? Quem vai parar isso?
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    Joseph Lewnard

    setembro 22, 2025 AT 10:15
    Eu vi um vídeo de um rapaz de 19 anos levando água pra quem tá ferido no meio da fumaça. Ele não tinha bandeira, não tinha partido. Só tinha humanidade. Esse é o Nepal que eu quero conhecer. Não o dos políticos. O dos que ainda se importam. 🙏
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    Andressa Lima

    setembro 22, 2025 AT 21:07
    O bloqueio digital foi uma violação de direitos fundamentais, conforme previsto no art. 5º, IV, da Constituição Federal brasileira - analogicamente aplicável por analogia constitucional. A proporcionalidade não foi observada, e a resposta estatal foi desproporcional e ilegítima.
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    Yasmin Lira

    setembro 23, 2025 AT 17:32
    eu nao consigo acreditar q isso ta acontecendo... minha cabeça ta explodindo... pq ninguem faz nada... eles estao morrendo e ninguem faz nada... eu choro toda vez q vejo os videos...
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    Marcia Cristina Mota Brasileiro

    setembro 24, 2025 AT 08:35
    eu tbm chorei... e depois fiquei com raiva... pq os caras que fazem isso aqui... são os mesmos que falam de direitos humanos na frente da camera... mas nao fazem nada na pratica... eu odeio isso...
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    Rodrigo Maciel

    setembro 24, 2025 AT 19:16
    Esta é a tragédia grega em tempo real: os deuses do poder, arrogantes e cegos, foram desafiados por um povo que descobriu que o fogo não é apenas destruição - é renascimento. Eles não estão queimando prédios. Estão queimando mitos. E o mais assustador? Eles estão certos.

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