Quando um ex-juiz da Lava Jato vira testemunha contra seu próprio sucessor, e o ex-ministro da Justiça responde chamando-o de "ladrão aloprado" — o que antes era uma operação de combate à corrupção vira um circo de acusações cruzadas. Eduardo Appio, juiz federal afastado e agora investigado por suspeita de furtar champanhes em supermercados de Blumenau, enviou à Polícia Federal um requerimento formal pedindo abertura de inquérito para apurar o que classifica como "coação no curso do processo" por parte do senador Sergio Moro. A peça, entregue recentemente ao diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, descreve uma campanha digital que, segundo Appio, visa intimidá-lo por sua atuação como "testemunha-chave" em três inquéritos sigilosos sob a relatoria do ministro Dias Toffoli no Supremo Tribunal Federal.
Do juiz à testemunha: a virada inesperada
Appio assumiu os processos da Lava Jato em Curitiba após Moro deixar a magistratura em 2018 para ingressar no governo Bolsonaro. Agora, ele não está mais julgando, mas denunciando — e alega que as declarações públicas de Moro, feitas nas redes sociais e em entrevistas, têm o propósito claro de minar sua credibilidade e forçar o arquivamento de investigações que envolvem desvios bilionários e acordos de leniência fraudulentos. Em carta, Appio afirma ter revelado esses fatos à Procuradoria-Geral da República, ao STF e ao Conselho Nacional de Justiça em maio de 2023 — e que desde então sofre uma "agressão digital orquestrada". "Após 31 anos de serviço público honesto e imaculado", escreveu, "agora sofro... com a finalidade de me coagir".
A resposta de Moro: ironia e desprezo
Moro não se calou. Em postagem nas redes sociais, chamou Appio de "ladrão aloprado" e "herói do Prerrogativas" — referência a um programa de TV que ele já criticou publicamente. "Não tenho culpa se o Juiz Appio resolveu furtar champanhes", disse, em tom de provocação. A observação não é meramente colateral: o caso de furto em supermercados em Blumenau, ainda em investigação, tornou-se o ponto central da campanha de desgaste contra Appio. Mas o que Moro ignora — ou talvez ignore de propósito — é que o valor da denúncia de Appio não está na sua conduta pessoal, mas no conteúdo das investigações que ele pode revelar. E isso assusta.
Os processos que ninguém quer ver
Appio menciona especificamente a retirada de sigilo de documentos que apontam para desvios de recursos públicos e manipulação de acordos de leniência — algo que, se comprovado, pode implicar não só ex-procuradores como Deltan Dallagnol, mas também estruturas internas da força-tarefa da Lava Jato. Ele ainda faz referência a uma operação recente autorizada pelo STF: buscas e apreensões na 13ª Vara Federal de Curitiba, antiga sede da operação. É como se o próprio lugar onde a Lava Jato nasceu estivesse sendo revistado por suas próprias sombras. E Moro, o arquiteto da operação, está no centro da mira.
Um processo paralelo: Moro sendo julgado por ofensas a Gilmar Mendes
Curiosamente, enquanto Appio pede investigação contra Moro, o senador enfrenta seu próprio processo no STF. Em outubro de 2024, a Primeira Turma da Corte decidiu manter Moro como réu em ação penal por declarações feitas em abril de 2023, quando afirmou, em vídeo: "Não, isso é fiança, instituto... para comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes". A defesa de Moro alegou que era "brincadeira infeliz" — mas o STF entendeu que a frase, em contexto político, poderia ser interpretada como tentativa de corrupção judiciária. O caso está em trâmite. E agora, Appio quer que a PF investigue se Moro está usando sua influência para pressionar o STF a arquivar os inquéritos em que ele mesmo é alvo.
Por que isso importa para o país
Este não é um conflito entre dois homens. É o espelho de uma crise institucional. A Lava Jato, que começou como um símbolo de combate à impunidade, agora é vista por muitos como um instrumento de vingança política. Appio, mesmo com suas falhas, está na posição de quem pode revelar como os processos foram manipulados — e Moro, mesmo com sua popularidade, é o símbolo do sistema que ele ajudou a construir. Se Appio for silenciado por pressão, o STF perde a chance de esclarecer abusos reais. Se Moro for condenado por coação, o precedente será histórico: um ex-herói da anti-corrupção sendo responsabilizado por tentar intimidar uma testemunha. O país não precisa de heróis. Precisa de justiça imparcial.
O que vem a seguir
A PF agora precisa decidir se aceita o requerimento de Appio. Se abrir o inquérito, será o primeiro passo para investigar se houve, de fato, interferência indevida no curso de processos sigilosos. Se recusar, a pressão política sobre o STF só aumentará — e Appio promete continuar falando. "Continuarei sendo testemunha no Supremo Tribunal Federal custe o que custar", disse ele. Moro, por sua vez, já sinalizou que não vai recuar. A bola está no campo da Justiça. Mas o público já está assistindo.
Frequently Asked Questions
O que motivou Eduardo Appio a pedir um inquérito contra Sergio Moro?
Appio alega que declarações públicas de Moro, especialmente nas redes sociais, constituem uma "agressão digital orquestrada" com o objetivo de intimidá-lo por ser testemunha-chave em três inquéritos sigilosos no STF. Ele afirma que as falas de Moro visam pressionar a Corte para arquivar investigações sobre abusos na Lava Jato, incluindo acordos de leniência fraudulentos e desvios bilionários.
Quais são os processos sigilosos envolvidos?
Appio não detalhou os processos, mas afirma que estão sob a relatoria do ministro Dias Toffoli e envolvem possíveis irregularidades cometidas por membros da força-tarefa da Lava Jato, incluindo Deltan Dallagnol. Ele mencionou que informações sobre desvios e fraudes foram encaminhadas à PGR, ao STF e ao CNJ em maio de 2023, mas os documentos permanecem sob sigilo.
Por que o caso de furto de champanhe é relevante?
O furto em supermercados de Blumenau é um fato pessoal de Appio, ainda em investigação, mas foi usado por Moro como arma de desgaste. A relevância está na tentativa de desviar o foco das investigações sobre a Lava Jato para a conduta individual de Appio — uma tática comum em disputas políticas, mas que, se comprovada como intencional, pode configurar obstrução à justiça.
O que aconteceu com o processo de Moro contra Gilmar Mendes?
Em outubro de 2024, a Primeira Turma do STF decidiu manter Sergio Moro como réu por declarações feitas em abril de 2023, em que comparou a fiança a um "habeas corpus do Gilmar Mendes". A defesa alegou ser "brincadeira", mas a Corte entendeu que a frase, em contexto político, poderia ser interpretada como tentativa de corromper a justiça. O processo segue em andamento e é um dos poucos casos em que Moro responde judicialmente por atos próprios.
Existe risco de interferência política nos inquéritos do STF?
Sim. A combinação de influência midiática, redes sociais e poder político pode criar pressão indireta sobre decisões judiciais. Se Moro estiver usando sua plataforma para minar a credibilidade de testemunhas, isso configura risco institucional. O STF já enfrentou casos semelhantes, como o de Lula e o de Bolsonaro, mas o novo cenário envolve um ex-herói da Lava Jato sendo acusado de tentar calar quem o conhece por dentro.
O que deve acontecer agora?
A Polícia Federal precisa decidir se abre o inquérito. Se sim, o STF terá um novo elemento para avaliar a integridade das investigações da Lava Jato. Se não abrir, a pressão pública e jurídica sobre Moro aumentará — e Appio promete continuar falando. Independentemente da decisão, o caso expõe uma fragilidade do sistema: quando os agentes da justiça se tornam adversários, quem garante que a verdade prevaleça?